A real contribuição de Nietzsche para o pensamento humano é a distinção que ele estabeleceu entre os espíritos “apolíneo” e “dionisíaco”, que se contrastam e se completam.
Apolo é harmonia, ordem, civilização.
Dioniso é embriaguez, descontrole, caos.
O elemento apolíneo é associado a períodos culturais como o Renascentismo ou o Classicismo, enquanto o elemento dionisíaco remete a seus contrários, o Barroco e o Romantismo — a própria humanidade “pulsa” entre um espírito e outro, como cada um de nós em nossas cogitações à luz do dia e nossas devassidões ao calor da noite.
Acredito que esses conceitos sejam úteis para o autoconhecimento, e com eles identifiquei minhas próprias tendências, inclusive lúdicas.
Cada um pode fazer a leitura de si mesmo. Como exemplo, revelo uma simplificação das manifestações apolíneas e dionisíacas em mim.
Para dar vazão aos impulsos dionisíacos, a principal atividade que procuro é a música — que o próprio Nietzsche associa a Dioniso.
Para saciar minhas necessidades apolíneas, é especialmente o jogo que eu procuro. No jogo, não quero “sentir”, rir, chorar. Para isso, vou atrás de outras atividades.
A partir disso é possível explicar com facilidade os títulos que me atraem mais e os que me atraem menos!
Puerto Rico, Caylus, Container, Le Havre são exemplos de jogos complexos e controlados, praticamente sem caos e aleatoriedade. Mas nem o espírito apolíneo afasta aqueles jogos mais rápidos e leves, do tipo Incan Gold ou Can’t Stop, em que você tem meios minimamente palpáveis de lidar com a (enorme) sorte envolvida.
Ao ouvir música, eu teria horror de um “samba de uma nota só”. Da mesma forma, ao jogar sinto repulsa pelos títulos “dionisíacos”. Alguns são mais evidentes: Formula D, Pompeii, Liar’s dice, Bang e Cold war CIAxKGB encabeçam a lista tranquilamente, embora UNO seja o seu grande ícone.
Mas alguns outros jogos menos suspeitos eu também encaixo como dionisíacos, o que me explica o fato de eu não ter gostado deles. Incluo 3 títulos “gamers” que conheci nos últimos 10 dias (e que me levaram a estas elucubrações).
KAIVAI
É dionisíaco em seu caráter excessivamente híbrido. A sensação (para o jogador apolíneo) é que mistura alhos e bugalhos. Os elementos soam incompatíveis: você criar um hexágono para entrar com um navio (que faz as ações), e depois ter esse mesmo hexágono sendo contado no final como elemento de “controle de área”, E AINDA ter o valor dessa área sendo dado pelo total de hexágonos principais — que são anexados ao longo do jogo também por motivos distintos — é algo que soa (sempre para o apolíneo) como decidir o vencedor de um jogo de futebol de acordo com o número de vezes em que os atletas pronunciaram uma palavra começada com a letra B.
URSUPPE (PRIMORDIAL SOUP)
Tematicamente, tinha que ser dionisíaco mesmo! Afinal, representa o surgimento da vida. E o caos da sopa primordial está lá, num jogo em que o “balanço” dos nutrientes e as táticas dos “genes” e as limitações do ozônio tornam o desenrolar incontrolável. Ruim (do ponto de vista apolíneo), para um jogo de duas horas que é, além disso, “trabalhoso” pelas tarefas mecânicas que são necessárias (a intensa troca de cubinhos no tabuleiro).
IN THE SHADOW OF THE EMPEROR
Um jogo de “controle de área” elevado a enésima compliquência. Como em muitos outros jogos dionisíacos, não adianta você planejar algo — o que dilui o interesse dos próprios detalhes exagerados do jogo. Explico: o fato de você dominar esta ou aquela área, e portanto ter este ou aquele distinto privilégio, é algo fortuito. Primeiro que, para você conseguir dominar a área “x”, irá depender muito do que os outros jogarem. E segundo que todos os poderes têm algum valor, e nenhum é decisivo. Pode parecer confuso o que estou dizendo (até porque estou tentando descrever algo caótico), então compare com Puerto Rico, em que os poderes dos prédios são todos, em si, bons e adequados ao custo de cada prédio, e é O JOGADOR que tem que escolher (e PODE escolher) os prédios e poderes que terá, assim montando sua estratégia.
Outros títulos
Outros jogos dionisíacos que me lembro: Amun-Re, Domaine, Witch’s brew, Nefertiti e todos (que conheço) do Rüdiger Dorn.
A questão da pontuação baixa
O dionisíaco me explica por que, na maioria dos casos, me incomodo com jogos de pontuação muito baixa, como o próprio In the shadow of the emperor, acima, e também jogos como Blue Moon City, Jet Set e Diamond’s club. A pontuação baixa soa uma aproximação grosseira, e muito mais ligada, portanto, ao caos. A pontuação alta remete à precisão apolínea.
O jogo DOMINION
Basicamente, Dominion é um jogo apolíneo, com regras muito simples e diretas, e bastante estratégico: você escolhe as cartas que deseja comprar e combinar, os riscos que deseja correr, e tenta ajustar seu próprio “timing”. Mas as cartas de ataque da expansão Intrigue tornam Dominion um jogo dionisíaco, em especial a Swindler. Por esse motivo (e mais alguns outros), não comprei essa expansão, mas sim a Seaside.
Como usar tudo isso
Em primeiro lugar, toda essa reflexão é, para mim, um passo além do “gosto não se discute”. Podemos não discutir, mas ao menos compreender. Sem entrar no mérito de um jogo ser “balanceado” ou “quebrado” ou o que quer que seja, podemos entender que algumas pessoas procurem mais um tipo de jogo do que outro. Conheço pessoas que, agora identifico, tendem para jogos apolíneos; outras, para jogos dionisíacos; e outras mais híbridas. Nenhum desses três representa um gosto “melhor” que os outros. Os jogos dionisíacos podem ser ótimos: nos do Rüdiger Dorn, por exemplo, reconheço mecânicas muito boas! Queria que elas estivessem em jogos apolíneos… Enfim, acho que pode ser uma classificação interessante. Preparem-se para quando comentarem algum jogo de agora em diante: eu sempre perguntarei se é apolíneo ou dionisíaco! :-)
Como usar tudo isso – 2
Há 4 jogos excelentes que eu ainda não consegui “decidir” se quero jogar ou não. São jogos demorados, por isso mais difíceis de ficar experimentando até decidir. Só para começar…
Agricola – dionisíaco com as cartas?
Through the ages – talvez apolíneo
Twilight struggle – provavelmente dionisíaco
Brass – pende um pouco para o dionisíaco